Em artigo escrito em 2008 por Denize Guedes para a Revista Superinteressante é levantada a questão da eficácia e força da Psicoterapia em suas diversas linhagens e abordagens - a conclusão do artigo é pontual: "Tantas
correntes diferentes de psicoterapia impõem uma questão: como saber
qual é a mais eficaz ou pelo menos se alguma delas é eficaz? É aqui que
entra uma outra área da ciência que está se
interessando pelo que acontece no divã. Pesquisas com neuroimagem
funcional, método que fotografa o fluxo sanguíneo no cérebro, estão
provando que a terapia baseada na fala causa, sim, efeitos permanentes
no nosso sistema de aprendizagem, na memória e no processamento de
emoções."
Transcreve-se aqui o artigo publicado pela informações e conhecimentos atuais nela contidos: Psicólogos: a cura pela palavra
Jean de Oliveira Leite batia na namorada. De repente, por causa de
uma discussão ou por terem esquecido uma das sacolas de compras no
supermercado, ele dava tapas e pancadas na mulher que amava. Dois anos
de namoro e algumas situações de violência depois, ela deu queixa na
delegacia e terminou com ele. Os dois estariam separados até hoje se
Jean não tivesse procurado um analista e ingressado num grupo de
reflexão de homens com o mesmo problema. Na terapia, entendeu por que,
em um de seus sonhos que tinha a namorada como personagem, ela assumiu a
forma de um arame que ele dobrava sem parar. “Eu não podia dobrá-la
metendo a mão”, diz. Depois das sessões de psicoterapia, os dois
voltaram. Estão juntos – e em paz – há 3 anos.
No ano passado, a bancária Tatiana Dória não queria mais viver. No
fundo de uma depressão, não se interessava por nada nem ninguém.
Raramente saía: passava os dias na cama, dormindo ou assistindo filmes.
Foi quando decidiu bater à porta de um psiquiatra. Saiu de lá com uma
receita de antidepressivos e um encaminhamento à psicoterapia. Durante 6
meses, passou por dois terapeutas de abordagens diferentes, até o
convênio médico cortar o benefício. Insistiu por dois meses, pagando as
sessões do próprio bolso, mas resolveu abandonar o tratamento por
achá-lo inútil. “Procuro o autoconhecimento há muito tempo, mas
realmente não sei se um terapeuta tem algo a me acrescentar”, diz
Tatiana, que preferiu seguir com os remédios e se dedicar a práticas
como meditação.
Assim como Jean e Tatiana, milhares de pessoas estão insatisfeitas
com o que são ou como estão. Querem se livrar de fobias, manias
obsessivas, conseguir dormir direito, ter forças para sair da cama pela
manhã, deixar para trás dificuldades sexuais ou simplesmente achar a
vida mais interessante. Cada vez mais gente resolve desbravar a torre de
Babel que é o mundo das terapias, habitado por mais de 400 modelos. O
número de psicólogos deu um salto de 48% desde 2000, de 123 mil para 182
mil. Sem contar o crescimento do número de psicanalistas, psiquiatras e
outros profissionais, como os filósofos clínicos. A quantidade de
pessoas que procuram terapia também deve aumentar, já que, em abril, o
governo tornou obrigatório aos planos de saúde oferecer 12 sessões
anuais de psicoterapia a todos os conveniados. Se antes ir a psicólogos
era coisa de “problemáticos”, hoje falar da experiência parece ser um
bom jeito de engatar conversas com amigos no bar.
A palavra vem do grego therapeúein, que carrega significados como
assistir e cuidar. Desabafar no ombro do amigo e conversar com um médico
atencioso pode até ser terapêutico – mas não é um método que afasta o
sofrimento por meio de técnicas apoiadas em fundamentação teórica, as
psicoterapias, todas, de um modo ou de outro, baseadas no tratamento
pela fala. Entre quem freqüenta um psicoterapeuta e quem está pensando
em procurar um, é comum haver dúvidas do tipo: vale a pena gastar tempo e
dinheiro com isso? Não é besteira contar detalhes da intimidade a
alguém que mal conhecemos e que não oferece nenhuma garantia de
eficácia? Afinal, terapia funciona?
Sim e não. Dezenas de pesquisas neurológicas provam que sessões de
psicoterapia modificam conexões neurais e padrões de comportamento, como
aconteceu com Jean. Apesar disso, é grande a possibilidade de você
conhecer terapia e, como Tatiana, achar o método inútil – e até bizarro.
Por dentro da terapia
A primeira pessoa tratada pela terapia da palavra se chamava Bertha
Pappenheim, mas ela ficou conhecida como Anna O. Foi assim que os
médicos Josef Breuer e Sigmund Freud a chamaram na hora de narrar o caso
clínico que germinou a psicanálise. Anna O. sofria de alucinações
histéricas, sonambulismo e se recusava a beber água. Já levava 6 semanas
ingerindo somente a água de frutas quando os sintomas começaram a
desaparecer – sempre após falar em voz alta sobre o que a atormentava.
“Depois de ter desabafado energicamente a raiva que ficara dentro dela,
pediu para beber e bebeu sem inibição uma grande quantidade de água,
acordando da hipnose com o copo nos lábios. Com isso, o distúrbio
desapareceu para sempre”, escreveram os dois no livro Estudos sobre a
Histeria, de 1895.
Anna O. fez Freud ter uma sacada genial: expressar em voz alta
pensamentos opressores e resgatar lembranças traumáticas causam efeitos
benéficos ao corpo. Isso parece óbvio hoje em dia, mas não naquela
época. As pessoas então enxergavam o corpo e a alma (o pensamento e o
sentimento) como elementos que se opunham ou pelo menos não se
comunicavam. Tratavam-se doenças mentais com procedimentos físicos, como
eletrochoques ou incisões no cérebro. Com a criação do tratamento pela
fala, Freud revolucionou a psiquiatria, criando uma nova área de estudo –
a psicanálise.
Primeiro, ele afirmou que todos temos problemas mentais de menor ou
maior grau. Cada pessoa, para Freud, monta sua identidade em cima de
conflitos do inconsciente – local dos traumas e desejos reprimidos na
infância. Depois, para chegar a esses desejos e impulsos que operam
abaixo do nível da consciência, ele criou todo um conjunto de técnicas.
Colocou um divã para dentro do consultório (e do nosso imaginário), onde
o paciente deveria sentar e falar fazendo associações livres, de modo
que o psicanalista pudesse desvendar as reais motivações por trás
daquela fala e dos sonhos que a pessoa narrava ter vivido. “Não apenas
Freud inventou sozinho o campo da psicoterapia mas o fez de uma só vez”,
afirma, no livro Os Desafios da Terapia, o psiquiatra Irvin D. Yalom,
professor emérito de psiquiatria da Universidade Stanford (EUA) e autor
de Quando Nietzsche Chorou.
Nesses mais de 100 anos, a psicanálise se multiplicou em diferentes
teorias e abordagens, dando origem a uma área mais abrangente, a
psicologia. Mas a criação de Freud permanece a fonte onde, de alguma
forma, todas as correntes da psicoterapia ainda bebem. “Dá para
considerar a psicanálise como o berço de todo o campo, pelo menos em
relação à maioria das linhas de psicologia profunda”, diz Franklin
Goldgrub, professor de psicologia da PUC-SP. De modo geral, o terapeuta
com alguma influência de Freud tenta provocar no paciente um processo de
autoconhecimento, ou seja, de descoberta da raiz das suas motivações e
traços de personalidade. Um processo que envolve passos como estes:
Rever o passado. Entre psicólogos, é comum ouvir a frase “o passado
muda todo dia”. A idéia é que podemos voltar aos fatos do passado que
mais nos atormentam e reavaliá-los, dando a eles outro significado.
Fazer uma “arqueologia da alma”, como dizia Freud, passa por descobrir
como nossos pais e os desejos deles influenciaram a nossa vida. Uma
passagem de Cartas a um Jovem Terapeuta, do psicanalista Contardo
Calligaris, explica por que a infância assume papel tão importante na
terapia: “Não é porque os eventos da infância sejam mais marcantes do
que os de hoje, mas porque os eventos de hoje tomam relevância e sentido
a partir de nosso passado e, portanto, de nossa infância”.
Tomar consciência. É quando o paciente descobre o que faz com a
própria vida e tenta vislumbrar o motivo por trás de suas ações.
Geralmente a tomada de consciência provoca descobertas revolucionárias
sobre si próprio, do tipo: “Minha mulher morreu há 3 anos e desde então
vivo fingindo que ela está viva” ou “Sou ranzinza e intolerante com as
pessoas da mesma forma como ajo comigo mesmo”.
Responsabilizar-se. Depois que a pessoa se dá conta de seus traços de
comportamento, vem a hora de tomar para si a responsabilidade pelos
problemas e deixar de culpar os outros – os pais, o chefe, a sociedade
ou o marido que decidiu ir embora. Como diz o psiquiatra Yalom no livro O
Carrasco do Amor: “Se a pessoa não se sente responsável pelas próprias
dificuldades, como, então, ela será capaz de modificar sua situação?”
Não significa se culpar pelos infortúnios da vida. “Culpar-se é querer
se castigar. Responsabilizar-se é querer mudar. O objetivo é fazer a
pessoa perceber o que quer e como ela própria se sabota”, diz Goldgrub.
O problema é que esse roteiro inspirado nas idéias de Freud pode
demorar anos para se desenvolver – e ninguém garante que produza os
resultados que o paciente espera. Tem mais: muitas das teorias de Freud e
outros grandes psicanalistas não nasceram do método científico
tradicional – aquele em que um cientista delimita um universo de
pesquisa, faz análises e a partir dela tira conclusões. Suspeita-se até
que Freud tenha exagerado histórias de seus pacientes para comprovar sua
teoria. “Do nascimento da psicanálise até hoje, várias idéias de Freud
foram descartadas”, diz o neurocientista Renato Sabbatini, da Unicamp.
“A neurociência, por exemplo, descobriu que os sonhos têm mais a ver com
a memória do dia anterior do que com desejos reprimidos.”
À medida que as idéias de Freud foram sendo questionadas, novos
tratamentos surgiram. Das mais de 400 técnicas diferentes que existem
hoje, a maioria apareceu a partir da década de 1960, quando a revolução
sexual fez as pessoas dar mais importância ao bem-estar do corpo e da
mente. Enquanto a terapia baseada na psicanálise tradicional permaneceu
um processo demorado, onde falar de cura e eficácia soa estranho, sua
hegemonia foi dando lugar a modelos mais curtos e focados, as
psicoterapias breves dinâmicas. Uma das correntes mais fortes é a
terapia cognitivo-comportamental (TCC), recomendada sobretudo a quem
sofre de fobias, como medo de dirigir, ou transtornos obsessivos, como o
hábito de lavar as mãos várias vezes por hora. Bem diferente das
terapias baseadas em Freud, a TCC quer saber pouco do passado ou dos
desejos reprimidos do paciente. O tratamento costuma ser mais curto e se
concentra no que a pessoa pensa sobre si mesma e como esse pensamento
se reflete nas ações. “Para a terapia cognitiva, os sintomas depressivos
vêm de pensamentos e crenças negativas sobre si e sobre o mundo”, diz o
psiquiatra Aristides Volpato Cordioli, organizador de um catatau de
quase 900 páginas chamado Psicoterapias – Abordagens Atuais. Assim
como a TCC, existem técnicas mentais que fazem você se acostumar a ter
pensamentos tranqüilizantes, levando esse sentimento a situações de
ansiedade.
Freud também vem perdendo terreno porque se restringiu aos conflitos
interiores de um indivíduo, dando pouca importância a influências
sociais nos sentimentos dele. “O sofrimento psíquico varia de acordo com
o contexto sociocultural”, diz o psiquiatra e psicanalista Mário
Eduardo Pereira, professor de psiquiatria da Unicamp. Se na época de
Freud os casos de histeria proliferavam, provavelmente em resposta à
repressão sexual do século 19, a sociedade atual pode nos deixar mais
narcisistas, competidores e ansiosos por ter prazer. “Vive-se hoje em
uma sociedade nada solidária e muito competitiva, onde as posições
conquistadas são sempre incertas. Isso está fortemente relacionado aos
casos, cada vez mais comuns, de pânico, insônia, ansiedade, estresse e
depressão”, diz Mário Eduardo Pereira. Se a raiz desses problemas está
no tipo de vida que levamos hoje em dia, eles não podem ser tratados
apenas pelas técnicas de Freud.
Por dentro do cérebro
Tantas correntes diferentes de psicoterapia impõem uma questão: como
saber qual é a mais eficaz ou pelo menos se alguma delas é eficaz? É
aqui que entra uma outra área da ciência que está se interessando pelo
que acontece no divã. Pesquisas com neuroimagem funcional, método que
fotografa o fluxo sanguíneo no cérebro, estão provando que a terapia
baseada na fala causa, sim, efeitos permanentes no nosso sistema de
aprendizagem, na memória e no processamento de emoções.
O último estudo da área, feito na Universidade de Amsterdã no ano
passado, analisou 20 pessoas com transtorno do estresse pós-traumático,
distúrbio que geralmente atinge quem passa por traumas como seqüestro,
acidentes graves e abuso sexual. Elas foram submetidas a uma sessão
semanal de psicoterapia breve – inspirada em Freud, porém focada e mais
curta – durante 4 meses. Enquanto isso, outras 15 pessoas com o mesmo
diagnóstico ficaram num grupo sem tratamento. No final, o cérebro de
quem fez terapia mudou. Houve mais atividade em regiões do córtex
pré-frontal, área relacionada a cálculos, pensamentos práticos e ações
que tomamos conscientemente. Na prática, o tratamento deu alívio a
sintomas que têm tudo a ver com traumas, como hipervigilância (estado de
alerta permanente) e recordações aflitivas, que se manifestam em
pesadelos e pensamentos recorrentes.
Alguém pode logo dizer que não é privilégio da psicoterapia alterar
redes neurais. E não é mesmo. Com maior ou menor intensidade, as
experiências da nossa vida provocam mudanças na atividade cerebral –
como na hora em que ouvimos a seleção de músicas da nossa banda
favorita, recebemos a notícia triste da morte de alguém ou damos uma boa
caminhada no parque. “O que é bastante recente é o reconhecimento da
comunidade científica sobre a intensidade e a permanência das mudanças
alcançadas pela psicoterapia. Não se imaginava que o funcionamento do
cérebro pudesse ser alterado tão dramaticamente pelo tratamento, e com
benefícios tão duradouros”, diz o psicólogo e neurocientista Marco
Montarroyos Callegaro.
É como se o pensamento alterado pela terapia fosse a tabuada que a
gente não esquece mais. “Os sistemas de memória e aprendizagem
constituem a base de todas as psicoterapias. Como o cérebro é uma
estrutura plástica, que se modifica de acordo com nossas experiências, o
tratamento consegue atuar em determinados circuitos”, diz Jesus
Landeira-Fernandez, diretor do Laboratório de Neuropsicologia Clínica e
Experimental da PUC-RJ.
Meses antes da pesquisa holandesa, uma outra, realizada pela USP,
mostrou resultados parecidos. O estudo envolveu 16 pacientes também com
transtorno do estresse pós-traumático. Eram pessoas que tinham vivido
eventos como a morte de parentes, seqüestro e assalto. Em dois meses,
elas passaram por sessões semanais de uma psicoterapia chamada exposição
e reestruturação cognitiva, que consiste em revisitar o evento para
então dar a ele um significado menos traumático. Outros 11 pacientes com
o mesmo distúrbio ficaram numa lista de espera. Resultado: aqueles que
foram às sessões tiveram mais atividade no córtex pré-frontal e menos na
amígdala. Como esta parte do cérebro regula nossa sensação de medo, a
relação é direta: a terapia reduziu o medo e a ansiedade dos pacientes.
Já quem ficou no grupo de controle não teve mudanças relevantes. “Novos
arranjos das sinapses ocorrem durante o aprendizado promovido pela
psicoterapia”, diz o psicólogo Julio Perez, o autor do estudo. “O
tratamento modifica as redes associativas que antes estavam relacionadas
à situação que causava dor e dificuldade.”
Quer mais? Há ainda estudos provando a eficácia da terapia para
problemas específicos, como as fobias. Na Alemanha, em 2006, 28
voluntárias perderam o medo de aranha em sessões semanais, de 5 horas,
de TCC. Elas tiveram menor atividade da ínsula e do giro do cíngulo
anterior direito, áreas ligadas àquelas reações que nós não controlamos,
como ficar assustado e com o coração batendo rápido logo depois de ver
uma aranha. No Japão, também em 2006, 12 pacientes com síndrome do
pânico se livraram do mal em 10 sessões de terapia comportamental ao
longo de 6 meses. O cérebro deles também deu uma recauchutada nas áreas
ligadas ao medo, à memória e ao pensamento consciente. “Há indícios de
que as psicoterapias promovem o fortalecimento das funções executivas,
ligadas ao córtex pré-frontal”, diz Landeira-Fernandez. Em outras
palavras, a terapia fez as pessoas pensar melhor.
As pesquisas de neuroimagem indicam que quem completa o tratamento
sai, em geral, 80% melhor do que os pacientes fora do consultório. É um
resultado tão positivo que já está provocando mudanças na saúde pública
de alguns países. Na Inglaterra, o governo anunciou um investimento de
170 milhões de libras para treinar 3 600 profissionais em terapia
cognitivo-comportamental. “O valor inicial do tratamento com
antidepressivos é inferior ao da psicoterapia. No entanto, no médio e no
longo prazo, a melhor relação é a do tratamento psicoterápico, que
tende a apresentar menor reincidência da depressão e efeitos mais
duradouros”, diz Callegaro. O resultado também fez até os mais céticos
admitir as vantagens da terapia. “Uma coisa é a teoria ultrapassada de
Freud, outra são os efeitos comprovados da prática”, diz o
neurocientista Sabbatini.
Por fora da terapia
Mas tem um probleminha. A neuroimagem também levanta questões que
incomodam a psicologia. Em grande parte das pesquisas, há um paradoxo
aterrador: não importa se o paciente passou por uma tratamento inspirado
em Freud ou uma prática mais nova. No fim, o efeito de todas é muito
parecido. Ou seja: em eficácia, abordagens distintas não fazem diferença
nenhuma entre si. Inconformados com isso, pesquisadores da Universidade
de Leeds, na Inglaterra, tentaram recentemente pôr fim ao mistério.
Durante 3 anos, eles estudaram 5 500 pacientes que passaram por 3 tipos
de terapia: cognitivo-comportamental, psicodinâmica e centrada na
pessoa. Conclusão publicada em 2007: equivalência de novo.
O fato de terapias diferentes funcionarem igualmente cria uma
hipótese: talvez a psicoterapia não funcione pelo motivo que os
terapeutas apontam, mas por razões não tão confortáveis à psicologia.
Dylan Evans, pesquisador da Universidade de Cork, na Irlanda,
especializado em psicologia evolutiva, defende uma dessas razões
incômodas: “Se as diferentes técnicas não têm qualquer impacto na
recuperação, então é plausível que os benefícios se devam à única coisa
que todas as abordagens têm em comum. A crença do paciente de que está
recebendo ajuda médica de boa-fé”. Ou seja: efeito placebo – o mesmo que
faz as pessoas se sentir melhor depois de tomarem um remédio de farinha
ou passarem por um benzimento.
Evans conta em seu livro Placebo (sem tradução para o português) que
essa possibilidade teria assombrado Freud até a morte. O Pai da
Psicanálise acreditava na supremacia do seu método e, tão logo
diferentes linhas se formaram dentro da escola psicanalítica, passou a
atribuir os efeitos provocados por essas dissidências à pura sugestão.
“Logo se tornou claro que seus próprios pacientes não diferiam em
recaídas daqueles tratados por heréticos como Jung e Adler”, afirma
Evans.
Assim se desenrola um novelo de pontos fracos dos tratamentos
psicológicos. Apesar de as pesquisas neurológicas provarem os efeitos da
terapia, não há provas de que isso acontece pelos motivos que os
terapeutas apontam. “Na área da saúde mental, é difícil até saber qual é
o distúrbio que a pessoa apresenta”, diz Sabbatini. Distúrbios mentais
não são como dores de cabeça – não há certeza do que o paciente tem e
nem se o tratamento vai ser eficaz como um analgésico. A falta de
fundamentação faz das terapias um serviço estranho: elas oferecem um
tratamento sem saber se ele vai dar certo. Por causa disso, “a
psiquiatria é uma das últimas áreas da medicina que ainda não conseguiu o
status de ciência”, diz Sabbatini.
É o que os especialistas chamam de fase empírica não científica:
quando se descobriu, pela prática, que uma erva ou uma atitude ajudam a
prevenir ou curar uma doença, mas sem ninguém saber exatamente por quê.
Por exemplo: no século 18, o médico italiano Giovanni Lancisi acreditava
que a malária era contraída ao se respirar o ar fétido de pântanos –
daí o nome da doença, que vem de “maus ares”. De fato, deixar de
circular em pântanos evita malária, mas não por causa dos maus ares, e
sim porque o lugar é cheio de mosquitos – estes, sim, a verdadeira
origem da doença. As psicoterapias podem estar nesse nível. Baseiam-se
numa crença forte e têm alguma eficiência, mas ninguém sabe exatamente
como a melhora acontece. E mais: pode haver uma causa e um tratamento
mais acertados, porém não descobertos.
Um exemplo é a genética. Por muito tempo, acreditou-se que a
esquizofrenia era um mal psicológico que deveria ser tratado no divã.
Quando vieram à tona suas raízes genéticas e químicas, a psicoterapia
para tratar esquizofrenia virou coisa do passado. Do mesmo modo, cada
vez mais pesquisas ligam os genes à predisposição ao comportamento
depressivo. E uma pesquisa de biólogos evolutivos dos EUA acaba de
mostrar que a hiperatividade tem laços genéticos. Psicólogos costumam
explicar esse distúrbio como uma estratégia de filhos para chamar a
atenção dos pais. Já os biólogos americanos descobriram que há uma razão
evolutiva para a hiperatividade existir. Quando o ser humano vivia em
grupos nômades, não conseguir parar quieto era uma vantagem competitiva
para caçadores e pastores. Hoje, porém, a vida sedentária fez desse
traço um problema. Pesquisas como essa mostram que, no futuro, os
cientistas podem descobrir que tratar depressão ou hiperatividade no
divã é tão equivocado quanto achar que os ares do lodaçal causam
malária.
Trapalhadas no divã
Para os psicoterapeutas, porém, a história é outra. Se linhas
diferentes de tratamento funcionam da mesma forma, não significa que o
efeito da terapia seja placebo ou coisa parecida. E sim que a eficácia
não depende do tipo de tratamento, mas da vontade do paciente em
amadurecer, da habilidade do terapeuta e sobretudo da relação que os
dois desenvolvem.
Pouca gente gostaria, por exemplo, de se tratar com quem se
compromete mais com a doutrina em que se formou do que com o paciente. E
passa as sessões tentando encaixar o pobre coitado na teoria. Críticos
da psicanálise chamam essa prática de “cara eu ganho, coroa você perde”.
É o caso do analista convicto de que o rapaz sofre do clássico complexo
de Édipo, quer matar o pai para ficar com a mãe. Se ele concorda com a
interpretação, perfeito. Se não, é porque está reprimindo impulsos
sexuais. “Um dos desafios é não tornar o nosso fazer um leito de
Procusto”, diz Julieta Quayle, um dos presidentes da Associação
Brasileira de Psicoterapia. No mito grego, os hóspedes de Procusto não
saíam vivos de sua casa, pois ele cortava ou esticava seus pés para que
coubessem no tamanho exato da cama que oferecia.
Também há o problema da má formação. A cada ano, o Brasil ganha 17
mil novos psicólogos. Muitos saem de faculdades pouco prestigiadas, não
fazem um curso de especialização num método ou num distúrbio e mesmo
assim abrem seus ouvidos para tratar das razões individuais do ser
humano – talvez o objeto de estudo mais complexo que existe. Além disso,
terapeutas também têm seus problemas emocionais, que podem resvalar
para o paciente. Nem todos mantêm uma necessidade básica: sua própria
terapia. “Como é possível uma pessoa guiar os outros num exame das
estruturas profundas da existência sem examinar a si mesmo?”, questiona
Yalom. Entre os resultados da falta de análise do terapeuta, está o de
seduzir ou deixar-se seduzir pelo paciente. Não raro terapeutas mal
analisados têm relacionamentos amorosos com clientes.
“Se fôssemos submeter terapeutas a um controle estatístico, poucos
sobreviveriam”, diz o neurocientista Sabbatini. Mas, como grande parte
do sucesso do tratamento depende de quem está se tratando, é muito
difícil avaliar um terapeuta. Para o profissional, fica fácil culpar o
paciente pela ineficácia das sessões. Diante disso, faz sentido a
metáfora que o psicólogo clínico americano Scott Miller usa para falar
do paciente: cliente herói. “Quer o terapeuta funcione ou não, depende
do cliente, e de suas habilidades heróicas, levantar-se contra as coisas
horríveis que lhe aconteceram”, afirma ele.
A terapia no futuro
A falta de certeza do tratamento pelo menos tem uma vantagem: exigir
terapeutas cada vez mais focados em resultados, que usem técnicas mais
científicas para descobrir o problema do paciente. “No futuro, talvez
possamos diagnosticar os transtornos através de exames de neuroimagem”,
diz Landeira-Fernandez.
Na hora do tratamento, uma das tendências é que cada vez mais os
profissionais se especializem no distúrbio e não numa doutrina
intelectual. Um exemplo é o trabalho do psicólogo clínico Albert Rizzo,
da Universidade do Sul da Califórnia. Bancado pelo Exército americano,
ele adequou a terapia cognitivo-comportamental a um game de guerra e vem
tratando soldados que sofreram traumas no Iraque. “Jovens acostumados à
realidade virtual, eles se sentem incentivados a voltar aos eventos da
guerra pelo computador”, diz Rizzo.
Mas também existe a tendência oposta: que algumas correntes fiquem
ainda mais distantes da ciência e próximas da filosofia, criando sessões
onde a cura seja um fator secundário. “Vivemos questões existenciais
que acompanham o ser humano há séculos”, diz o filósofo Lúcio Packter,
pioneiro da filosofia clínica no Brasil. Não à toa, o psiquiatra Irvin
Yalom dedicou o livro A Cura de Schopenhauer aos filósofos clínicos –
que ele chamou de terapeutas do futuro: “Nós [os psicólogos] fazemos
parte de uma tradição que remonta não só aos nossos ancestrais imediatos
da psicoterapia, começando com Freud e Jung, e todos os ancestrais
deles – Nietzsche, Schopenhauer, Kierkegaard – mas também Jesus, Buda,
Platão, Sócrates, Galeno, Hipócrates e todos os outros grandes líderes
religiosos, filósofos e médicos que se ocuparam de cuidar do desespero
humano”. Uma venerável agremiação.
Animação mostra a relação Psicólogo e Paciente: